Etanol reduz emissões de CO2 em até 73% em relação à gasolina
Valor corresponde ao conceito do poço (ou campo) à roda, em que é considerado todo ciclo de geração e consumo da energia utilizada
No texto anterior, abordamos o conceito de descarbonização e uma prévia dos combustíveis e tecnologias que podem auxiliar na redução de emissões de gases de efeito estufa sem grandes impactos nos veículos com motor a combustão interna. A partir de agora, detalharemos cada um desses combustíveis, começando pelo etanol, produto que o Brasil aposta como combustível alternativo desde a década de 1970, durante a primeira grande crise do petróleo.
O processo de descarbonização no setor automotivo preconiza a redução ou eliminação total de emissões de gás carbono (CO2) na atmosfera proveniente do transporte de pessoas ou produtos. A grande maioria dos veículos utiliza combustíveis fósseis (gasolina ou diesel), derivados do petróleo, que é extraído do subsolo. Ao queimar, o CO2 que antes estava “escondido” debaixo da terra, passa para a atmosfera, aumentando a quantidade desse gás, que até certo ponto é benéfico e necessário para manter a vida no planeta, porém, em excesso, torna-se extremamente prejudicial.
Vale lembrar que a vegetação terrestre e marinha exerce papel fundamental no processo de eliminação de CO2, por meio da fotossíntese. Toda planta necessita de CO2 para viver e, com isso, transforma esse gás em oxigênio. São, portanto, os vegetais que auxiliam na regulação dos níveis de CO2 no planeta. No entanto, com a industrialização, desmatamento, crescimento populacional e outros fatores já expostos no texto anterior dessa série, o ser humano emite mais CO2 do que a vegetação consegue absorver. Uma solução seria reflorestar totalmente o planeta, algo improvável.
Assim, a vida na Terra não irá suportar tanto tempo se a quantidade de CO2 emitida continuar nos níveis atuais. O uso de biocombustíveis como o etanol é uma das soluções mais interessantes, principalmente para o Brasil, uma vez que parte do CO2 emitido na queima pelos motores é absorvido pela planta da cana-de-açúcar, principal fonte de obtenção do etanol produzido no País.
Emissões
De acordo com o diretor-técnico da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Henry Joseph Jr, se a frota atual de veículos flex circulante no Brasil, que é de 38,3 milhões de unidades, passasse a utilizar apenas etanol, haveria uma redução instantânea nos índices de emissões de CO2 na ordem de 50%. Em tempo, a frota brasileira é de 45 milhões de veículos leves, que despejam 62 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera.
Estudo divulgado em 2009 pela Embrapa Agrobiologia (Seropédica/RJ) revelou que o etanol de cana é capaz de reduzir em 73% as emissões de CO2 na atmosfera se usado em substituição à gasolina, desde a preparação do solo para o plantio da cana de açúcar até o transporte do etanol produzido para o posto. Se comparado com o automóvel a diesel, a redução é de 68%.
Todo o processo foi avaliado: a emissão de gases na fabricação e aplicação de fertilizantes no campo, construção da usina de álcool e fabricação das máquinas e tratores. O mesmo foi feito com a gasolina e diesel, onde foi considerada a emissão dos gases desde a extração do petróleo até a combustão do produto nos motores dos veículos.
Outro estudo bastante interessante que mostrou as vantagens do uso do etanol foi realizado pela fabricante de veículos Stellantis, em 2023, ao simular em teste dinâmico um veículo alimentado com quatro fontes distintas de energia, a fim de mensurar a emissão total de CO2 em cada situação. O automóvel foi abastecido com etanol e comparado em tempo real com a mesma situação de rodagem em três alternativas: com gasolina tipo C (E27); 100% elétrico (BEV), abastecido na matriz energética brasileira, e 100% elétrico (BEV) abastecido na matriz energética europeia.
Na comparação, foi utilizada uma combinação de metodologias que consideram não apenas a emissão de CO2 associada à propulsão do veículo durante o uso, mas as emissões correspondentes a todo o ciclo de geração e consumo da energia utilizada.
Durante o teste comparativo realizado, o veículo percorreu 240,49 km e os resultados obtidos de emissões de CO2 apontam que a gasolina (E27): emitiu 60,64 kg CO2eq, seguido pelo 100% elétrico (BEV) com energia europeia, com 30,41 kg CO2eq, o etanol (E100), com 25,79 kg CO2eq, e o menos emissor de CO2, o veículo 100% elétrico (BEV) com energia brasileira, com 21,45 kg CO2eq.
É interessante notar que ao considerar o saldo total de emissões de todo o ciclo, o veículo movido a etanol apresenta vantagens inclusive em comparação com um veículo elétrico a bateria, abastecido com energia gerada na Europa, consideradas as características da matriz energética europeia (predominantemente de fontes térmicas, da queima de carvão ou gás natural).
Quando comparado à gasolina, o etanol se destaca ainda mais. O saldo final mostra que, na comparação entre os dois combustíveis, o uso do etanol evitou a emissão de 34,85 kg de CO2eq no trajeto, o equivalente a 144 gramas de CO2eq por quilômetro rodado. O veículo abastecido com etanol reduz mais de 60% a pegada de carbono.
Tecnologia
Desde a década de 1970, o Brasil se destaca como produtor e consumidor de etanol combustível no cenário mundial, tendo como matéria-prima a cana de açúcar. O desenvolvimento de novas tecnologias tem permitido aumentar a produção de etanol em até 50% sem a necessidade de aumentar a área de plantio. Em tempo, em um hectare de terra é possível produzir 90 toneladas de cana de açúcar (para efeito de comparação, na mesma área se produz 3 toneladas de soja).
Batizado de etanol de segunda geração (E2G), essa tecnologia utiliza resíduos que seriam descartados do processo de fabricação do etanol comum (o etanol de primeira geração, E1G) e do açúcar. Em outras palavras, o E2G é feito da palha e do bagaço da cana-de-açúcar.
Por este motivo, o E2G também é conhecido como bioetanol, etanol verde ou etanol celulósico. Trata-se de um biocombustível avançado que pode ainda ser obtido a partir de qualquer vegetal com substâncias facilmente ser convertidas em açúcar, como o amido, encontrado no milho e em outros cereais.
Pioneira na produção de E2G, a Raízen, aposta alto no bioetanol como uma solução mundial no processo de descarbonização do transporte. O presidente da Raízen, Ricardo Mussa, acredita que mundo ideal é o motor elétrico movido a etanol, por meio de um reformador de biomassa, que converte o etanol em energia elétrica e tem como produto secundário água pura.
Produção do E2G
Atualmente a Raízen produz o E2G em escala industrial, reutilizando o bagaço da cana de açúcar utilizado na produção do etanol de primeira geração. A técnica utilizada consiste no pré-tratamento, onde a celulose da biomassa é fracionada, na hidrólise, que quebra a celulose e a hemicelulose em açúcares (glicose e xilose), e a fermentação e a destilação, tal como na produção do etanol de primeira geração.
Há, claro, diversas tecnologias para cada etapa. No pré-tratamento, o fracionamento da biomassa pode ser por meio de processo químico (que pode ser básico ou ácido), processo biológico, processo térmico e processo mecânico, entre outros. O intuito dessa etapa é disponibilizar a biomassa. Na Raízen, o processo é químico, mecânico e térmico.
Já na hidrólise, pode haver a química (mais barata e rápida, porém com rendimentos menores) ou hidrólise enzimática (é mais seletiva e pode atingir rendimentos elevados, mas tem reação mais lenta). A Raízen utiliza o processo enzimático.
E na fermentação e destilação, que são os principais processos, tudo ocorre de forma parecida com o processo produtivo do etanol de primeira geração, com a diferença de que a fermentação do açúcar xilose requer o uso de uma levedura geneticamente modificada. A planta de E2G pode realizar outras etapas secundárias, como evaporação dos caldos, separação de sólidos, secagens, tratamento de efluentes etc..
Segundo a Raízen, o etanol de segunda geração poderá ser mais viável economicamente a partir de 2025 e se igualar a produção de etanol comum em 2030, sendo que o potencial de produção da companhia nos próximos anos será de 2 bilhões de litros de E2G, considerando uma fabricação total de 4 bilhões de litros de E1G.
Distribuição
As vantagens do etanol sobre outros combustíveis alternativos para a descarbonização do transporte vão além das questões ambientais, uma vez que 100% dos postos de combustíveis no Brasil comercializa o etanol. Assim, seja qual for a solução adotada, o etanol sai na frente simplesmente por já estar presente no cotidiano dos consumidores brasileiros, sem a necessidade de novos investimentos para distribuição e comercialização.
Os consumidores também não precisam investir nas estruturas residenciais, tal como ocorre com os veículos elétricos, que apesar de não ser imprescindível, muitos adotam pontos de recarga tipo wall box em casa ou condomínio.
Dessa forma, a viabilidade econômica do etanol como combustível alternativo para a descarbonização dos transportes tende a ser uma das mais vantajosas.